Juli 01, 2002


Um dia eu escrevi um post sobre o pavor que eu tenho de ter que fazer escolhas e tomar decisões. Olhem só que legal o texto qeu me mandaram:

Versões de mim

Vivemos cercados pelas nossas alternativas, pelo que podíamos ter sido.
Ah, se apenas tivéssemos topado aquele emprego, completado aquele curso,
chegado antes, chegado depois, dito sim, dito não, ido para Londrina,
casado com a Doralice, feito aquele teste... Agora mesmo, neste bar
imaginário em que estou bebendo para esquecer o que não fiz - aliás, o nome
do bar é Imaginário -, sentou um cara do meu lado direito e se apresentou:
- Eu sou você, se tivesse feito aquele teste no Botafogo. E ele tem mesmo
a minha idade e a minha cara. E o mesmo desconsolo.
- Por que? Sua vida não foi melhor do que a minha?
- Durante um certo tempo, foi. Cheguei a titular. Cheguei à seleção. Fiz
um grande contrato. Levava uma grande vida. Até que um dia...
- Eu sei, eu sei... - disse alguém sentado ao lado dele. Olhamos para o
intrometido... Tinha a nossa idade e a nossa cara e não parecia mais feliz
do que nós. Ele continuou:
- Você hesitou entre sair e não sair do gol. Não saiu, levou o único gol
do jogo, caiu em desgraça, largou o futebol e foi ser um medíocre
propagandista.
- Como é que você sabe?
- Eu sou você, se tivesse saído do gol. Não só peguei a bola como me
mandei para o ataque com tanta perfeição que fizemos o gol da vitória. Fui
considerado o herói do jogo. No jogo seguinte, hesitei entre me atirar nos
pés de um atacante e não me atirar. Como era um herói, me atirei... Levei
um chute na cabeça. Não pude ser mais nada. Nem propagandista. Ganho uma
miséria do INSS e só faço isto: bebo e me queixo da vida. Se não tivesse
ido nos pés do atacante...
- Ele chutaria para fora. Quem falou foi o outro sósia nosso, ao lado
dele, que em seguida se apresentou:
- Eu sou você se não tivesse ido naquela bola. Não faria diferença. Não
seria gol. Minha carreira continuou. Fiquei cada vez mais famoso, e com
fama de sortudo também. Fui vendido para o futebol europeu, por uma fábula.
O primeiro goleiro brasileiro a ir jogar na Europa. Embarquei com festa no
Rio...
- E o que aconteceu? - perguntamos os três em uníssono.
- Lembra aquele avião da Varig que caiu na chegada em Paris?
- Você...
- Morri com 28 anos.
- Bem que tínhamos notado sua palidez.
- Pensando bem, foi melhor não fazer aquele teste no Botafogo...
- E ter levado o chute na cabeça...
- Foi melhor - continuei - ter ido fazer o concurso para o serviço público
naquele dia. Ah, se eu tivesse passado...
- Você deve estar brincando! - disse alguém sentado a minha esquerda.
Tinha a minha cara, mas parecia mais velho e desanimado.
- Quem é você?
- Eu sou você, se tivesse entrado para o serviço público.
Vi que todas as banquetas do bar à esquerda dele estavam ocupadas por
versões de mim no serviço público, uma mais desiludida do que a outra. As
conseqüências de anos de decisões erradas, alianças fracassadas, pequenas
traições, promoções negadas e frustração. Olhei em volta. Eu lotava o bar.
Todas as mesas estavam ocupadas por minhas alternativas e nenhuma parecia
estar contente. Comentei com o barman que, no fim, quem estava com o melhor
aspecto, ali, era eu mesmo. O barman fez que sim com a cabeça, tristemente.
Só então notei que ele também tinha a minha cara, só com mais rugas.
- Quem é você? - perguntei.
- Eu sou você, se tivesse casado com a Doralice.
- E...?
Ele não respondeu. Só fez um sinal, com o dedão virado para baixo... Creio
que a vida não é feita das decisões que você não toma, ou das atitudes que
você não teve, mas sim, daquilo que foi feito.
Se bom ou não, penso, é melhor viver do futuro que do passado.

Luís Fernando Veríssimo